JOVENS E ÁLCOOL, UMA MISTURA PERIGOSA

Comecei a beber aos 14 anos. Na primeira vez, tomei metade de uma garrafa de vodca. Passei mal e parei no hospital. Tomei soro e os médicos injetaram glicose na minha veia. Hoje, bebo menos, mas a bebida vicia e eu gosto.” O relato de Marina (nome fictício), uma moradora do Guará de 16 anos, reflete a vulnerabilidade de jovens diante do consumo indiscriminado do álcool. A morte de uma universitária de 19 anos na madrugada da última sexta-feira por suspeita de consumo excessivo de bebida alcoólica reacendeu o debate dos perigos da substância lícita. Camille Barroco Xavier morava no Rio de Janeiro e veio a Brasília participar da 20ª edição do Encontro Nacional dos Estudantes de Relações Internacionais (Eneri). Em uma das festas promovidas pela organização do evento, a vítima começou a passar mal e não resistiu, após sofrer uma parada cardiorrespiratória.

No Brasil, a estimativa é de que pessoas com 15 anos ou mais consumiram o equivalente a 8,7 litros de álcool no ano de 2010 — quantidade superior à média mundial. A conclusão é do Relatório Global sobre Álcool e Saúde, divulgado em maio do ano passado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). A pesquisa revela que, em todo o mundo, a faixa etária entre 20 a 49 anos é a principal afetada em relação a mortes associadas à ingestão de bebida alcoólica. No Brasil, entre 60% e 63% dos índices de cirrose hepática têm relação com o álcool.

Marina é aluna do 1º ano do ensino médio de uma escola da rede pública. Ela conta que não encontra dificuldades para adquirir bebida alcoólica. “Às vezes, meus amigos compram; em outras, sou eu. Alguns lugares são fáceis, como distribuidoras, porque não pedem identidade. Cerveja eu não bebo, porque é ruim. Geralmente consumo vodca em encontros de amigos. Bebo porque acho que fica mais divertido”, justifica.

O irmão da adolescente também começou cedo no caminho dos excessos. Carlos (nome fictício) tem 18 anos, mas o primeiro gole foi aos 14. Hoje, o aluno do ensino médio bebe todo fim de semana. “Consumo umas 20 latinhas de cerveja em uma noite. Nunca passei mal. Minha mãe reclama um pouco, diz que eu bebo muito e, às vezes, exagero mesmo. Aos 16 anos, deixei de beber por um mês, porque percebi que estava demais. Depois, voltei. Já fiquei bêbado, mas vou até o meu limite.” Para o jovem, beber é sinônimo de diversão. “Comecei a beber porque via meus amigos fazendo o mesmo, mas depois comecei a gostar. Não acho graça ir a uma festa e ficar sem beber.”

Dados da pesquisa Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), do Ministério da Saúde, consideram abusivo o consumo de bebida a partir de quatro ou mais doses, para mulheres, e cinco ou mais, para homens, em uma mesma ocasião, dentro de 30 dias. Segundo o estudo de 2013, divulgado no ano passado, 16,4% dos jovens a partir de 18 anos bebem de forma abusiva no Distrito Federal pelo menos uma vez por mês. Nacionalmente, em ambos os sexos, o consumo foi mais frequente entre pessoas mais jovens, de 18 a 34 anos, e aumentou com o nível de escolaridade.

Em 17 de março do ano passado, a presidente Dilma Rousseff sancionou a Lei nº 13.106/2015, que criminaliza a oferta de bebidas alcoólicas a menores de 17 anos. Quem vende, fornece, serve ou entrega qualquer forma álcool a crianças ou adolescentes, sem justa causa, responde criminalmente pelo ato. A pena é de detenção de dois a quatro anos. O estabelecimento pode ser multado entre R$ 3 mil e R$ 10 mil, e o local, interditado. Antes da nova lei, a comercialização para adolescentes era considerada uma contravenção penal.

Segundo o médico Fernando Uzuelli, especialista em clínica médica, dados do DataSUS mostram que a cada 36 horas morre um jovem entre 20 e 29 anos no Brasil em decorrência de intoxicação aguda por álcool. O profissional explica que 350ml de cerveja, 115ml de vinho ou 43ml de uísque ou vodca causam aumento de 0,02g de álcool por decilitro de sangue. “A partir de quatro doses, há um comprometimento de funções cognitivas; 10 doses já afetam a coordenação e a estabilidade do paciente; e a partir de 15 doses pode ocorrer uma depressão do sistema nervoso central, acarretando, eventualmente, um coma. O que acontece, principalmente na faixa etária dos jovens, é que o consumo foge do controle dos pais, e a idade envolve muito impulso.”

O presidente executivo do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa), Arthur Guerra de Andrade, explica que o uso de bebida alcoólica por adolescentes e jovens é frequente. Segundo o psiquiatra e especialista em dependência química, a realidade é preocupante, especialmente porque muitos começam a ingerir a substância ilícita com pouca idade. “O jovem acha que não vai ter problema e acredita que consegue lidar com a bebida. Os pais ficam mais preocupados com as drogas ilícitas do que com as lícitas. O problema é que existe algo chamado pressão de grupo, ou seja, eles não bebem sozinhos, bebem porque os amigos também o fazem”, esclarece.

A presidente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e Outras Drogas (Abead), Ana Cecília Marques, considera como problema a falta de fiscalização da lei que proíbe a venda de bebidas alcoólicas para menores de 18 anos. “É necessária uma política voltada ao adolescente para que ele seja protegido desses fenômenos do mundo moderno onde o acesso à bebida é fácil. Parece que nada mais funciona. A lei só não basta. É preciso que ela venha acompanhada de outras coisas, que envolva a participação da família”, alega.


Depoimento

“Tive uma espécie de apagão na memória”

“Tinha 21 anos quando passei mal pela primeira vez. Eu fui a um show na Exposição Agropecuária na Granja do Torto e comecei a beber muito já na porta do evento. Fiquei empolgado. Quando entrei, não me lembro mais do que aconteceu. Tive uma espécie de apagão na memória e, quando me dei conta, estava acordando em uma ambulância do pronto-socorro contratada para o show. Recebi os primeiros atendimentos, me deram muita água e me deixaram de repouso. Em um período de uma hora e meia, tomei, pelo menos, 500ml de uma bebida conhecida como Wall Street. Também bebi mais ou menos sete latas de cerveja. Passei muito mal, mas até hoje bebo. Gosto, porque tenho a sensação de que a bebida dá uma relaxada. Não bebo para ficar maluco. Uma alta dosagem é perigosa, quem bebe demais passa mal, e depois que você tem essa experiência vai aprendendo. Mas a quantidade depende do lugar e do ambiente. Em um barzinho, tomo até um 1,5l de cerveja. Se é uma boate ou festa, eu vou de vodca. Somos um grupo de quatro amigos e compramos aproximadamente 2l de vodca. Minha mãe reclama que, às vezes, eu bebo demais e passo dos limites. Na verdade, ela reclama não da quantidade, mas sim da frequência. Tem vezes que eu bebo a semana toda.”

Vagner (nome fictício), 26 anos
estudante do 7º semestre de ciência política de uma universidade particular da Asa Sul

Memória

28/2/2015
Humberto Moura Fonseca, 23 anos, morreu após ingerir cerca de 25 a 30 doses de vodca em uma festa universitária em Bauru (SP). Ele entrou em coma alcoólico na tarde do mesmo dia. O estudante do 4º ano de engenharia elétrica na Universidade Estadual Julio de Mesquita (Unesp) era mineiro e, em uma página de uma rede social, escreveu “melhor morrer de vodka do que de tédio” (Sic). Outros seis estudantes da mesma instituição passaram mal no evento e três foram internados em Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) em estado grave: Mateus Carvalho, Juliana Tibúrcio Gomes, 19 anos, e Gabriela Alves Correa, 23 anos.

15/11/2014
Um jovem de 21 anos identificado como Cleverson Pereira apresentou convulsões depois de ingerir bebida alcoólica. Ele participava de uma festa no centro de Curitiba. O socorro foi acionado, mas a vítima não resistiu. O jovem estava na companhia de outros amigos quando começou a passar mal. Segundo a Polícia Civil, não havia informação de que ele teria ingerido outras substâncias.

9/11/2014
Após ingerir bebida alcoólica em uma festa que reuniu adolescentes em uma casa, em Juína, a 734 quilômetros de Cuiabá (MT), um jovem de 16 anos passou mal. Segundo informações da Polícia Militar, a vítima teria consumido uma garrafa de bebida de forma ininterrupta. Testemunhas acionaram o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), mas, quando o socorro chegou, o adolescente já não apresentava mais sinais vitais.

22/10/2014
Samuel de Souza Bodan, 15 anos, passou quatro dias internado na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) pediátrica do hospital particular de Presidente Prudente, em São Paulo, onde acabou morrendo. Ele deu entrada na unidade de saúde inconsciente e em estado grave. Na noite de sábado, 18 de outubro, ele tinha ido com amigos a um show de uma dupla sertaneja em uma casa de eventos. Segundo a Polícia Civil, o adolescente tinha comprado uma garrafa de uísque por R$ 50 fora do estabelecimento. Ele começou a passar mal após ingerir a bebida. Dois amigos, de 14 e 16 anos, acompanhavam o garoto.

15/5/2014
Bruno Ribeiro da Silva, 22 anos, entrou em coma após participar da Festa das Nações de Cedral, em São Paulo. Ele estava com amigos quando começou a ter convulsões, e não resistiu. Segundo o atestado de óbito, a vítima teria sofrido asfixia mecânica, ou seja, pode ter se engasgado com o próprio vômito. Testemunhas contaram à polícia que Bruno começou a beber durante a tarde e teria continuado à noite, na festa. Ele foi socorrido por equipes do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), mas morreu no local.

12/5/2014
Jhones Santos Silva, 23 anos, morreu após ingerir bebida alcoólica nas imediações do Mercado Central da cidade de Tuntum, no interior do Maranhão. Uma equipe do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) foi acionada, mas, quando chegou ao local, o jovem sofreu uma parada cardiorrespiratória.

CORREIO BRAZILIENSE 29-04- 2015 - ISA STACCIARINI

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